26 de dezembro de 2010

Tudo o que era sólido


Chegado que é o fim do ano, e em tempo de recomeços, do alto deste trapézio voador - observatório instável sobre as coisas cá em baixo - mais do que me precipitar no vazio do novo ano que aí vem, opto por uma reflexão, necessariamente breve, sobre este tempo falhado, numa espécie de tentativa de escandir o passado recente para, depois, imitando as personagem de Exploradores do abismo , de Enrique Vila-Matas, fazer como «as pessoas normais que, ao ver-se à beira do precipício fatal, adoptam a posição do expedicionário e sondam o horizonte plausível, indagando sobre o que pode haver fora daqui ou mais além dos nossos limites».

E o que vi desde o meu instável posto de observação foi o arrancar do véu da utopia neo-liberal e as consequências desastrosas da desregulação capitalista sobre as economias, ameaçando transformar o «apocalipse alegre» em que íamos vivendo numa queda sem fim que nos levará não se sabe, ainda, até onde. E eis-nos, então, agora, «de pé enfrentando o caos» que irrompeu como uma brecha no rochedo aparentemente sólido das nossas rotinas, ameaçando dissolver no ar tudo aquilo que era sólido, como antecipou Marx.

E enquanto, por ora, vamos caminhando sem mapa pelas estradas que fazemos -«e que o fazemos somente ao caminhar por elas» -, como escreveu Zygmunt Bauman, que fazem os políticos? Deixam-se ir na mesma operação de encobrimento que volta a servir os «mercados», assumindo novas patologias de posição, transitórias, etéreas que mais não fazem do que permitir a colonização do discurso político pelas mesmas retóricas neo-liberais que nos conduziram perigosamente para a beira do abismo. Outros, diante do perigo que sobrevém, e este vem sempre, armam-se em maquinistas da desgraça e vão maquinando soluções contra as vítimas de sempre.

E nós, em separado ou em simultâneo, puros hedonistas, hiperactivos voláteis, contempladores sensíveis, espectadores obscenos, que fazemos diante do torvelinho que vai arrastando o país (e o mundo), e nós com ele, para o vórtice fatal tão bem descrito por Edgar Allan Poe no conto «Uma descida ao Maelstrom»? Deixámo-nos ir, ainda, em «apocalipse alegre» - para utilizar a mesma fórmula que Hermann Broch usou para descrever o nihilismo da sociedade europeia de fim de século - que é, também, a forma como hoje nos vamos entregando ao nihilismo pós-moderno, falhando, portanto, como diria Walter Benjamin, a ocasião de as coisas não continuarem como antes.

Daí, então, que este balanço possa parecer, numa espécie de espelhismo relativamente aos acontecimentos recenseados, também ele, nihilista. E sê-lo-á quer no sentido em que persegue a incompletude, o falhado, a catástrofe de «as coisas continuarem como antes», quer, ainda, por corresponder a um modo de escandir o tempo que só produz passado, que é uma nova forma de «doença histórica» que revoga o tempo breve da novidade. Mas ainda que nihilista face à consciência da generalização actual do alegre apocalipse, porque não ler, também, nesta recensão cronológica uma forma de rebelião contra o próprio nihilismo? O que dito de outro modo poderá traduzir-se na pergunta: como aceitar estes acontecimentos quando se pode sempre esperar que o tempo que vem aí traga outras possibilidades ao mundo, outras ocasiões de não deixar as coisas continuarem como antes? Que não seja mais um recomeço, mas antes um começo? Ou que, como desejava Paul Celan, nos deixe caminhar pelas estradas que fazemos afrontando «a crise» enquanto sinal da liberdade para responder ao perigo que sobrevém.

Este o balanço que importa perseguir, até porque só o escandir do tempo, recenseando a história não para arquivá-la, mas para nos confrontarmos com ela, levará a acreditar que um balanço pode ser algo mais do que uma cronologia ou uma patologia da «doença histórica» de que falava Nietzsche. E que, quem sabe, nalguma cesura aparentemente invisível na sucessão veloz de fins e de recomeços, sejamos capazes, ainda, de sondar os horizontes plausíveis do tempo actual, indagando sobre os acontecimentos que deveremos perseguir no futuro para superar as consequências dos acontecimentos passados, dando, finalmente, como bem tentou Walter Benjamin na sua solidão irredutível, «o salto de tigre no céu livre da história».

25 de dezembro de 2010

Passeantes de Dezembro



Herisau, dia de Natal de 1956. Entre faias e abetos, na ladeira que desce do Schochenberg, um homem jaz no chão confundindo-se com o deserto branco que o rodeia. A neve é o mais perfeito esconderijo. Depois de ter almoçado no sanatório, errara durante horas até ao coração do bosque, perdido. Ao longe, talvez, o toque lamentoso de um sino. A cabeça está apoiada sobre a raiz de um abeto que emerge da neve. Não há tristeza no seu rosto. Apenas a réstia de um olhar eternamente extasiado perante a neve pura, com o espanto de quem descobre, finalmente, o mais secreto dos desejos. Daqui a pouco, um grupo de crianças encontrará um corpo num bosque gelado e saberemos tratar-se de Robert Walser, o «poeta mais escondido que alguma vez existiu», como escreveu Elias Canetti. E que num nos dos seus romances, Os irmãos Tanner, pusera premonitoriamente na boca de um personagem uma elegia a Sebastião, o poeta encontrado morto na neve: «Com que nobreza escolheu a sua tumba! Jaz no meio de esplêndidos abetos verdes, cobertos pela neve. Não quero avisar ninguém. A natureza inclina-se a contemplar o seu morto, as estrelas cantam suavemente à volta da sua cabeça e as aves nocturnas grasnam: é a melhor música para alguém que não tem ouvido nem sensações».

No mesmo dia de Natal, em 1956, há cinquenta e três anos, portanto, morria o avô de W. G. Sebald - o escritor passeante através de paisagens solitárias, que morreu como o seu avô e como Walser, também, num dia Dezembro de 2002 – que tinha saído de sua casa para dar um passeio pela neve e tombou sobre ela quase à mesma hora em que o outro passeante, Robert Walser, caía, também, fulminado sobre a neve, numa paisagem de faias e abetos.

Neste Natal de 2010, recordo não os silêncios dos passeantes mortos em Dezembro, mas as palavras que nos legaram entre ruínas de um passado que remete para a totalidade do mundo. E olhando à minha volta, enquanto se fazem os preparativos para o fogo de artifício que há-de incendiar a noite da passagem do novo ano que aí vem com os seus relâmpagos e fulgores luminosos efémeros, retenho da leitura daqueles passeantes de Dezembro que partiram no mesmo ano em que eu cheguei, a sua esterilidade sentimental em relação às festividades natalícias.

Em Portimão não neva, por isso não haverá o perigo de me perder na neve no dia de Natal. Tão pouco sou um passeante através de paisagens solitárias. Já o escrevi aqui, sou antes um flâneur urbano que não se deixa bafejar pela secura do coração daqueles passeantes em relação ao Natal. Até porque, embora seja avesso a toda a retórica que transforma a época natalícia numa época do mais seco mercantilismo envolto em falsas roupagens de fraternidade e solidariedade, conforta-me a reunião da família, a exposição da minha pequena colecção presépios do mundo, a estética do fogo da lareira, os sabores, os cheiros, o aflorar do passado trazido sempre pelos mais velhos. Por isso, neste Natal continuarei a criar com os amigos e a família uma realidade distinta a partir da realidade inquietante, empobrecida, envolta em papéis cintilantes que serão rasgados no momento da troca de presentes. Porque se ainda é possível um verdadeiro espírito de Natal, ele só poderá ser encontrado se formos capazes de ver os outros no meio da bruma que anda por aí.

Aproveitar, então, o Natal, não para desaparecer na neve comoo passeante Walser, muito menos para nos perdermos nos labirintos do mercantilismo contradidório que nestes tempos de crise anda por aí, mas para, no meio de uma estética de ciprestes, pinheiros, zimbro e coloridas velas trémulas com cheiros que compoêm a paisagem doméstica destes dias, continuarmos a explorar, como passeantes de Dezembro, outras possibilidades para o mundo.

20 de dezembro de 2010

Uma tequila eloquente


Confesso que não queria continuar a escrever sobre éteres mexicanos, para não atribuirem à tequila, que raramente consumo, os estímulos espirituosos para as páginas deste diário que aqui vou destilando. E a prová-lo, a circunstância de em cada uma das duas garrafas de Herradura que trouxe do México, restar ainda metade do seu líquido dourado; e do mescal, apenas conhecer aquele que bebi com o «cônsul da embriaguez» em cantinas decadentes debaixo do vulcão. É que nisto das bebidas - que não na literatura -, embora não abstémio, assemelho-me a um sóbrio. Mas uma crónica do escritor mexicano Juan Villoro - também ele um sóbrio, mas só no que respeita a tequilas e outros álcoois - que encontro por acaso na net, convida-me, agora, para uma tequila eloquente. Uma tequila culto cujo nome, El Diablo, propõe o inferno sincero aos paraísos artificiais; e que, no verso do rótulo, para ser lido através da transparência dourada do líquido, como um peixe embriagado num «aquário ardente», oferece um poema de Eduardo Hurtado que nos recorda as irregulares qualidades etéreas da tequila: «El Diablo inventó los sueños/ la lujuria y el tequila,/ al fondo de esta botella/ duermen dourada pasiones y asombros,/ mil años de amor punzante,/ las nubes en las cañadas/ y otras cosas intranquilas». Onde guardar, então, esta garrafa? Na garrafeira ou na livraria?

19 de dezembro de 2010

Outros abismos mexicanos


E neste exercício de economato literário, como lhe poderia chamar Enrique Vila-Matas, à medida que vou sublinhando no livro de Lowry os nomes das setenta e sete bebidas consumidas debaixo do vulcão, imagino-me de novo em Cuernavaca, no Dia dos Mortos, ao crepúsculo, sentado na esplanada de Las Mañanitas de frente para os vulcões gémeos resplandecentes de neve, bebendo uma coronita gelada - essa clara cerveja mexicana que vem numa garrafa transparente e que, às vezes, no Verão, ao segundo entardecer, gosto de beber sentado no meu terraço sob um céu que se vai quebrando num esplendor vermelho.

E ali - isto é, aqui, agora, não na esplanada de solitários atravessada por um cortejo de máscaras e disparos mentais que vislumbro na dobra de uma página - imagino um país que, escreve Juan Villoro, é uma «indecifrável realidade que por convenção chamamos México». Um país cujo imaginário transforma os escritores que ousam cruzar os seus admiráveis abismos de festa, alucinação e morte em exploradores de um território literário vertiginoso donde, nem sempre, regressam incólumes. Como Lowry, o «cônsul da embriaguez e dos vulcões» (José Agostinho Baptista) engolido nos abismos do mescal.

Abandono, entretanto, o cenário de ruínas e amargura de Cuernavaca e, num recanto da minha biblioteca mexicana, vou procurando outras bifurcações de um país onde toda a ficção é possível. Primeiro, os mexicanos. Juan Rulfo, claro. E Carlos Monsivais e Sergio Pitol e Juan Villoro. E os estrangeiros. Talvez aqueles que melhor visionaram o México. Escreve Roberto Bolaño - o escritor chileno prematuramente desaparecido - que «dos muitos romances que já se escreveram sobre o México, os melhores provavelmente serão os ingleses e um ou outro americano. D. H. Lawrence [A serpente emplumada] desata a novela agonista, Graham Green o romance moral [O poder e a glória] e Malcolm Lowry a novela total» (Entre paréntesis, Anagrama, 2004). E, acrescentaria eu, Enrique Vila-Matas que em Longe de Vera Cruz (Assírio & Alvim) desata uma exaltada mitografia do México.

E que desata o próprio Roberto Bolaño que nos legou dois extravagantes romances «mexicanos» que guardo numa prateleira muito especial da minha biblioteca? Os detectives selvagens (Teorema), «o melhor romance mexicano desde A região mais transparente [Carlos Fuentes, 1958], ou o melhor romance sobre o México desde Debaixo do vulcão, segundo Jorge Herralde; um delírio de labirintos crepusculares derramando-se sobre arredores estranhos de uma cidade, México D. F., território de sobrevivência de uma geração encarcerada à beira do precipício. E 2666 (Quetzal) espécie de romance pulp fiction, buraco negro do crime múltiplo sem solução cuja cratera se situa em Ciudad Juárez, lugar de todas as vertigens, de todos os pesadelos? Desata, sobretudo, uma nova ordem literária - a do realismo visceral - que corta com o chamado realismo mágico latino-americano dos galos da Amazónia e das virgens em levitação e com as visões estrangeiras de uma Cuernavaca que só sobrevive no romance de Lowry.

18 de dezembro de 2010

Debaixo do vulcão


Lembro-me de há uns anos ir a caminho de Taxco pela estrada que sobe desde a cidade do México e, depois, se inclina para Cuernavaca, a cidade que em Debaixo do vulcão dá pelo nome de Quauhnahuac e onde nos habituámos a ver desesperar Malcolm Lowry. Lembro-me de errar através de um emaranhado de ruas ensolaradas; de atravessar um jardim decadente sob um céu em chamas; e, respondendo ao chamamento dolente de uma canção de Jorge Negrete vinda de uma máquina de discos, ter cruzado o umbral sombrio de uma cantina anónima que acabara de abrir as suas portas; e de, ali, depois, ter experimentado a minha primeira tequila destilada do mais puro agave mexicano. Herradura vinha escrito no rótulo da garrafa depositada sobre o balcão.

E a cantina, tão real como a do romance, talvez fosse El Farolito, cuja fotografia descobri há dias no blogue da Fundação criada em Cuernavaca para recordar o inglês perseguido pelos demónios do mescal. E é o próprio Lowry que, agora, mo confirma: «que beleza se poderá comparar à de uma cantina, de manhã, cedinho? […] pensa em todos os terríveis estabelecimentos, em frente dos quais as pessoas desesperam, impacientes por que se levantem os taipais! Nem as portas do céu, que para mim se abrissem de par em par, me proporcionariam uma alegria tão celestial, tão complexa e tão desesperada como aporta ondulada que se ergue com estrondo, como as gelosias que sobem, admitindo essas almas que vibram com as bebidas, levadas aos lábios com mãos vacilantes. Todo o mistério, toda a esperança, todo o desapontamento, sim, todas as misérias aqui se encontram, para lá dessas portas que se balançam num vaivém». (Debaixo do vulcão, Relógio de Água.

E agora que volto a ler o seu livro e a incandescência permanece, lembro-me de, naquele homem debruçado sobre o tampo de pedra encardida do balcão ao fundo, «afogando a dor no melhor mescal do México», parecer-me ter visto - não sei se por ter bebido aquele álcool até ao fundo, se embriagado pela atmosfera mescalianiana de El Farolito - o próprio Malcolm Lowry. E que outra visão poderia eu ter tido ali, naquela cantina debaixo do vulcão, com a garganta incendiada pelo fogo do mesmo agave que nesta dobra da noite volto a beber enquanto vou sublinhando o nome das setenta e sete bebidas alcoólicas diferentes emborcadas pelo cônsul e seus acólitos ao longo das trezentas e quarenta e seis páginas do alucinante romance de Lowry?

23 de novembro de 2010

Ou o poema sem poeta



Sabe-se que nasceu em 1930, no Funchal; que concluiu o 7º ano do Liceu na Escola Luís de Camões, em Lisboa; que frequentou Direito e, depois, Românicas, em Coimbra; que frequentou os cafés de Lisboa, com presença assídua no Café Gelo, onde conviveu com Mário Cesariny, Luiz Pacheco e Hélder Macedo; que andou por fora, em França, na Bélgica, na Holanda, na Dinarmarca onde experimentou vários empregos: criado de mesa numa cervejaria, cortador de legumes numa loja de sopas, enfardador de aparas de papel, operário nas forjas de Clabeck, carregador de camiões, guia de marinheiros em bairros de prostituição de Antuérpia. E que foi durante estas andanças, entre 1958 e 1960, que escreveu grande parte dos textos de A Colher na Boca (1961) e Os Passos em Volta (1963). Vai-se apagando, depois, a sua vida civil: uma passagem pelas Bibliotecas Itinerantes da Gulbenkian; tradutor de literatura médica; jornalista, tendo nesta qualidade feito uma reportagem de um Benfica-Sporting, em 1972, intitulada Uma ida ao Campo; psicoterapias; um processo crime por causa da sua colaboração na publicação de Filosofia de Alcova, de Sade; um acidente de viação que o atira para o hospital durante três meses; algumas viagens ao estrangeiro… Este o photomathon biográfico possível quando Herberto não tinha ainda migrado para o interior da sua obra.

Depois, escreve em Photomaton e Vox (1979): «Tenho de inventar a minha vida verdadeira». E inventa-a de tal maneira que passa a viver apenas dentro dos seus livros. Torna-se num «escritor oculto»: nem aparições públicas, nem entrevistas, nem fotografias nos jornais, nem conversas com leitores. Nem prémios: em 1994 recusa o Prémio Pessoa com que fora distinguido. Ainda em Photomaton & Vox escreve: «Não me vou deixar apanhar por tentações biográficas, a memória, os mitos que as culturas, marginais ou não, parecem querer que eu adopte. Não sou um símbolo da imaginação alheia». Subtrai-se por vontade às «câmaras ecoantes: (…) as respostas caóticas, o êxito, o erro, a morte da alma». Apaga-se como figura civil, instaurando o silêncio biográfico sobre si mesmo. Sublinha Manuel Gusmão que «num gesto de predestinação furiosa e paciente, o nome de "Herberto Helder" migrou para o interior ou as margens do seu poema: [Herberto Helder] Ou o poema contínuo». Nome e título de obra passam a ser a mesma coisa, fluindo ambos na «torrente silenciosa» e alucinada que se expande até ao limite do verbo num «poema absoluto» que escapa, como autorizaria Blanchot, «a qualquer determinação essencial, a toda a afirmação que o estabilize».

Como ler esta ocultação do autor na obra? Talvez como um extremo exercício do poema para escapar à determinação hermenêutica da tutela autoral. É que, lê-se num trecho de Photomathon & Vox, «… uma noite começo a escrever. Tenho memória. Nada foi esquecido, vem adequado agora aos vindicativos sentidos da expressão e da representação. E assim caminho para o esgotamento, no centro da fecundidade. As pessoas perdem o nome, as coisas limpam-se, cessam a fuga do espaço e o movimento dispersivo do tempo. Fica um núcleo cerrado. Fico eu». Ora é este “eu” biográfico que Herberto recusa. Por isso, dissolve-se na obra passando a existir única e exclusivamente nela, o que explica a interposição de um “ou” entre o seu nome e o título da obra. Porque a sua voz de autor já só existe no interior ou nas margens da sua obra. Erradica-se o autor. E fica a «inóspita beleza» em forma de um «poema contínuo» ardendo em lenta combustão.

5 de outubro de 2010

Flâneries


Gosto de Paris. Gosto de, ao entardecer, sob o zinco da esplanada do Café de Flore, enquanto vou observando a chuva oblíqua através das vitrines, folhear um livro acabado de comprar ali mesmo ao lado, na livraria La Hune; gosto de caminhar sem rumo preciso, por Germain-des Près, guiado apenas pela intuição do flâneur que me leva, depois, através da Rue de Seine a cruzar o arco que dá para o Quai de Conti e para a Pont des Arts.

Gosto das bancas de livros ao longo dos cais. Gosto da Île de Saint-Louis com as suas boutiques elegantes. Gosto de deambular pelo Marais até à Place de Vosges, de tomar um chá na rue Vieille du Temple. Gosto do mercado da rue Mouffetard e das suas bancas onde se vendem ostras com um forte sabor a mar, gosto do aroma forte dos queijos expostos naquela crémerie onde sempre entro. Gosto da livraria Arbre à Lettres onde, finalmente, encontrei o Livre des Passages, de Walter Benjamin.

Gosto, ainda, de errar por essas passages secretas, donde Benjamin via Paris como a cidade dos espelhos; gosto de me imaginar Le Paysan de Paris e, como Aragon, adentrar-me na cartografia de Paris e escutar a formidável ressonância das pequenas coisas que se mostram dissimuladas ao passeante.

30 de setembro de 2010

Paris pelos passos de Cortázar


Como se terá percebido pelos dois posts anteriores, tenho andado por estes dias deambulando ao jeito de Michel Butor (L´emploi du temps) entre el lado de allá e el lado de acá da Rayuela, de Cortázar. Ou, dito de outro modo, entre Paris e Buenos Aires, cidades metafóricas que no livro vou encontrando bifurcadas uma na outra como se «en Paris todo le [fuera] Buenos Aires y viceversa», o que a mim próprio, transformado em flâneur acidental, já me foi dado confirmar, vezes sem conta, em Paris e, por uma vez, na capital porteña, levado pelos passos de Borges através da Avenida de Maio, de inspiração haussmaniana, ou vagueando pelas suas ruas no mais buenairense dos livros de Cortázar, El examen, que, sem que o autor o soubesse ao tempo em que o escreveu (1950-51), viria a ser considerado como uma espécie de embrião desta Rayuela parisiense que começa na Pont des Arts, em Paris - onde Horacio vai em busca de Maga, não para se encontrar com uma mulher, mas em busca de uma cidade que ele confunde com uma mulher: «Yo digo que Paris es una mujer; y un poco la mujer de mi vida» – e, depois, se transfigura, a meio do romance, na ponte da Avenida San Martin, em Buenos Aires, onde o mesmo Horacio imagina Maga na figura daquela Talita noctívona que joga à rayuela no manicómio.

Mas longe de Buenos Aires é a Paris que vou regressando agora, primeiro pulando a pé coxinho através das casas deste livro labiríntico e logo, amanhã, uma vez mais, percorrendo as suas ruas como se fossem páginas escritas de um capítulo que começa na rue de Seine, passando sob o arco que dá para o Quai de Conti e dali atravessando, depois, a Pont des Arts onde, quem sabe, o acaso me conduzirá até Maga – porque «un encuentro casual es lo menos casual en nuestras vidas» – e, depois, talvez, ir por ali caminhando junto ao Sena, de bouquiniste em bouquiniste, forçando uma vez mais a casualidade, essa situação de graça tantas vezes experimentada por Cortázar e, antes dele, pelos surrealistas franceses.

Quem sabe, então, se não encontrarei Nadja, a personagem que André Breton persegue através das passages benjaminianas, «tão porteñas também» – Galerie Vivienne, Passage des Panoramas, de Jouffroy, du Caire, Galerie Sainte-Foi, de Choiseul – que anunciam uma experiência distinta da do mundo exterior. E, depois, se poderei encontrar nas ruas e praças sentimentais cujas casas verosímeis vou agora saltando no labirinto de papel da Rayuela, as mesmas que amanhã percorrerei como quem percorre as suas ruas e praças artúricas que dão para um tempo perdido em que, também para mim, Paris era, ainda, uma mulher? Rue des Lombards, Verneuil, Vaugirard, Mouffetard, Saint-Germain-des-Près, Saint-Sulpice, Contrescarpe. Ou nas comportas solitárias, alheias à depradação turística, do Canal Saint-Martin; ou no Parc de Montsouris, de conotações mágicas; ou nas ruelas do quartier de Lautréamont, a fragância amarela da Place Vendôme sob a vagarosa chuva de Outubro que amanhã – diz-me a meteorologia – cairá em Paris e me levará a refugiar-me naquela taberna que já ali não está, mas que estava naquela tarde em que Cortázar e Maga se refugiaram nela pisando a serradura espalhada no chão e aspirando o odor acre do vinho.

Fechar, então, agora, o livro e fazer a mala, porque como disse Cortázar «Mi mito de París actuó en mi favor. Me hizo escribir um libro, Rayuela, que es un poco la puesta en acción de una ciudad vista de una manera mítica [...] Uno cree conocer París, pero no hay tal; hay rincones, calles que uno podría explorar el día entero, y más aún de noche».

23 de setembro de 2010

Bifurcações


Lembro-me de numa manhã de Verão declinante, sob um sol de areia, ter apanhado um taxi à porta do número 1660 da rua Anchorena que acabara de visitar, em Palermo Viejo, onde jorge Luis Borges viveu entre 1938 e 1946, e que naquela manhã foi, também para mim, uma espécie de casa de Asterión, como a do conto homónimo, onde «todas as partes [...] existem muitas vezes [e] qualquer lugar é outro lugar. A casa é do tamanho do mundo; ou melhor é do mundo».

Dali, da casa de Asterión, que me fora revelada na sua perfeita ubiquidade, fui, ainda, no rastro de Borges até ao outro lado da cidade, ao café Tortoni, na Avenida de Mayo, que o escritor frequentava, às vezes, a caminho da Biblioteca Nacional. Num dos espelhos que ali se encontram para multiplicar o número daqueles que ali vão nos passos de Borges pareceu-me vê-lo passar com O Livro de Areia debaixo do braço. Recordei-me dos enigmas e maldições dos espelhos e seus duplos evocados a Bioy Casares no conto Tlon, Uqbar, Orbis Tertius onde «declarara que os espelhos e as cópulas são abomináveis porque multiplicam o número de homens». E de me ter perguntado se aquele homem cuja imagem fantasmal via reflectida no espelho fosse realmente Borges, para onde iria ele naquela manhã de verão declinante? A resposta encontrei-a, depois, inscrita no livro: «Declinava o verão, e compreendi que o livro era monstruoso. De nada me serviu considerar que não menos monstruoso era eu, que o percebia com olhos e o apalpava com dez dedos com unhas. Senti que era um objeto de pesadelo, uma coisa obscena que infamava e corrompia a realidade. Pensei no fogo, mas temi que a combustão de um livro infinito fosse igualmente infinita e sufocasse com fumaça o planeta. Lembrei haver lido que o melhor lugar para ocultar uma folha é um bosque. Antes de me aposentar, trabalhava na Biblioteca Nacional, que guarda novecentos mil livros; sei que à direita do vestíbulo uma escada curva se afunda no porão, onde estão os periódicos e os mapas. Aproveitei um descuido dos funcionários para perder O Livro de Areia numa das húmidas prateleiras».

Lembro-me de ter saído, depois, do Tortoni, pensando que Buenos Aires era um "jardim de caminhos que se bifurcam", como confirmaria, na mesma manhã, também ela já declinante, na confeitaria London City, na esquina com a rua Peru, para onde me conduziu o acaso. É que, sem que o soubesse, sentara-me mesmo ao lado da mesa onde Julio Cortázar escreveu, em 1960, o seu primeiro romance, Los Premios. Um empregado fardado a rigor contou-me que fora ali, naquela mesa protegida por uma corda de veludo, que se dera início à concentração dos premiados; uma placa de metal, um caderno e uma caneta completavam a mais do que despojada instalação cortazariana. Um pequeno painel reproduzia algumas passagens do romance que tem como cenário o café onde me imagininei conversando com o cronópio: «La marquesa salió a las cinco – pensó Carlos López – “Dónde diablos he leído eso?Era em el London de Peru y Avenida; eran las cinco y diez. La Marquesa salió a las cinco?».

Naquele momento não sabia ainda que, nessa mesma tarde, ao deambular pela cidade dos livros, uma outra bifurcação, no número 429 da rua Rodrigues Peña, me faria entrar num alfarrabista com o apropriado nome de Brujas para comprar a primeira edição de Rayuela, da Editorial Sudamerica cuja cartografia labiríntica vou por estes dias explorando através de bifurcações narrativas ao jeito de Michel Butor (L´emploi du temps) entre el lado de allá e el lado de acá, que o mesmo é dizer entre Paris e Buenos Aires. Ou não dissesse Horacio Oliveira, o alter ego de Cortázar em Rayuela, que «En Paris todo le era Buenos Aires y viceversa». Bifurcação absoluta que eu próprio confirmei quando em duas tardes declinantes, separadas por alguns anos, me detive em dois cafés cortazarianos confidenciais, o Old Navy, no Boulevard Saint Germain, e o London, na esquina da avenida de Mayo com a rua Peru, duas casas casuais do meu jogo do mundo pessoal.

20 de setembro de 2010

Buenos Aires adormecida



Li já não sei onde que, quando tinha dez anos, Julio Cortázar viveu a inesquecível experiência de subir ao décimo andar de um edifício em Buenos Aires e dali observar a cidade adormecida. Era, então, uma criança sensível, sem graça e estranha. A primeira metade da sua vida tinha-a passado com a sua família na Suíça, nas margens de uma guerra cujo alcance tardaria algum tempo a conhecer. No final da guerra, a sua família regressou à Argentina. Algum tempo depois, tinha, então, seis anos, o seu pai sairia de casa para não mais voltar, ficando, assim, a viver com a sua mãe, tias e a avó alemã, intuindo que a vida era algo mais do que as lições de piano e os livros de Julio Verne. Era o único homem num território povoado de jasmins, pessegueiros e pianos, perto da estação de Ferrocarril Sud, no «metasuburbio» de Banfield, nos limites da zona portuária. Por essa altura, preferia os livros de Julio Verne aos jogos do clube local, o Atlético Bánfield, um dos pioneiros do futebol argentino, o que lhe causou alguns problemas de relacionamento com os seus colegas de escola, logo ultrapassados quando estes descobriram a sua assombrosa facilidade para escrever, com estilos apropriados, as composições escolares passadas pelos professores.

Dou, agora, com uma fotografia nocturna de Buenos Aires, tirada por Horacio Coppola, não sei se na mesma noite em que o pequeno Julio subiu ao décimo andar. Mas sei, porque leio nuns seus versos precoces, que a sua impressão foi tão intensa que desencadeou nele um tal estado de excitação donde só regressaria depois de escrever que «Ya la ciudad parece así, dormida/ una pradera noctural, florida/ por un millar de blancas margaritas».

15 de setembro de 2010

Borges nocturno



Borges adorava caminhar, sobretudo de noite. Dos meus retratos de momento sobre o poeta argentino recupero duas notas sobre esse passeante nocturno.

A primeira, roubei-a às memórias do fotógrafo Horácio Coppola que conta que, numa noite chuvosa de 1936, caminhando juntos pelas ruas de Buenos Aires pararam diante de uma poça. Coppola ajustou a câmara e disparou. No espelho de água, estava reflectida a silhueta de uma casa do bairro de Palermo. Quando viu revelada a fotografia do amigo, Borges exclamou: «Isto é Buenos Aires».

A segunda nota reenvia-nos para um outro passeio nocturno, muitos anos depois, na companhia de Maria Kodama e do seu tradutor para inglês, Willis Barnstone. Conta Barnstone, em With Borges on na ordinary evening in Buenos Aires, que na noite de passagem de ano de 1975, depois de um bom jantar regado, com abundante vinho, depararam-se com uma greve de transportes e decidiram acompanhar Kodama a casa. Barnstone recordaria depois esse episódio: «Na semi-obscuridade e através do vento, atravessámos lentamente Buenos Aires. […] As horas passavam e Borges parecia cada vez mais encantado com os ruídos da rua». […] «De repente passou um inesperado carro eleéctrico e Kodama saltou para o seu interior deixando-nos a ambos à deriva». […] «Como regressar a casa se um era cego e o outro um estrangeiro que desconhecia as ruas da cidade?» […] Misteriosamente Borges começou a caminhar, parando de dez em dez passos. Pensei que o fazia porque se julgava perdido. Mas não, toda aquela exaltação era porque me queria falar da sua irmã Norah, da sua infância, dos seus antepassados».

Isto era Borges, um passeante nocturno que jamais se perderia na sua Buenos Aires inventada.

8 de setembro de 2010

Une saison en enfer



Há um verso de William Blake que diz que "if the doors of perception were cleansed, every thing would appear to man as it is, infinite". Talvez mais do que a inspiração para o nome da banda, os Doors tenham ido buscar a Blake a energia para atravessarem as portas para o território negro dos discos que viriam a criar, celebrando a loucura e o caos. "Negar as trevas da alma é só ter metade de um ser humano… e nós tínhamos os dois lados". Os Doors eram um número de equilíbrio entre a luz e as trevas, diz o teclista Ray Manzarek.

Tudo começara quatro anos antes, conforme conta Ray Manzarek: "Foi em casa de um amigo, em Venice Beach, que nos encontrámos com o Robby pela primeira vez. Começámos a tocar o Moonlight Drive e o Robby disse: «Tenho uma coisa que pode encaixar bem aqui. Abriu um compartimento no estojo da guitarra, onde se guardam as cordas, as palhetas e a droga, e tira de lá um gargalo de garrafa. Enfiou-o no dedo e tocou com o vidro contra as cordas de aço e o Morrison e eu arrepiámo-nos. Era um dos sons mais arrepiantes e fantasmagóricos que alguma vez ouvi. O Jim disse: É esse o nosso som, meu! Quero isso em todas as canções". Isso e Blake, Kerouack, Ginsberg, Nietsche, Mallarmée e, sobretudo, Rimbaud que Morrison lia obsessivamente: "Caro Wallace Fowlie [à época, professor de literatura francesa, na Duke Universiy e, depois, estudioso da poesia de Morrison], simplesmente queria agradecer-lhe pela tradução de Rimbaud. Eu precisava porque não leio francês tão facilmente (…) Sou cantor de rock e seu livro acompanha-me nas tournées. Jim Morrison”.

Durante os quatro anos que separaram a edição do seu primeiro album (Janeiro de1967) da de L.A. Woman, os Doors foram uma das bandas rock mais populares do mundo. E a sua ascensão não pode ser dissociada desse período turbulento de manifestações pacifistas, de consumo de drogas e todas as aspirações de contra-cultura que a sua música encarnaria fielmente. Mas esta violência reflectir-se-ia também no percurso da banda e, mais particularmente, na vida caótica do seu leader mítico. "O poeta torna-se vidente através de um longo desregramento de todos os sentidos”, escrevera Rimbaud um século antes, mas poderia ter sido escrito por um Morrison fascinado pelo radicalismo e pelo exílio em África do enfant terrible do nomadismo da alma. Nesses quatro anos, enquanto a popularidade da banda crescia, Morrison iniciaria a sua saison en enfer e começaria a desintegrar-se, a roçar o abismo, até cair com um fulminante ataque de coração, enquanto tomava banho, num hotel em Paris, em 1971. Talvez Paris tenha sido a sua Abissínia, um porto distante, a ante-câmara para um salto que o faria sair da obra e cair na vida. Como Rimbaud. Não teve tempo.

8 de junho de 2010

Hotéis de passagem (IV)



E já agora o meu hotel pessoal de passagem, o Excelsior, na rua de Cujas, em Paris, onde havia, também, um quarto misteriosamente parecido com o do conto de Cortázar, com uma porta escondida atrás de um armário que deixava ouvir não os gemidos de amantes de passagem, mas o murmúrio de um casal de exilados chilenos que ali estavam também de passagem.

Quando vou a Paris, subo sempre a Rue de Cujas, que liga o Boulevard Saint Michel à rue d´Ulm, e ao passar em frente da porta de entrada espreito, dissimuladamente, para o pequeno foyer onde se encontra o balcão da recepção, agora modernizado, depois de um upgrade remodelador que o dotou de um pequeno salão com amplas vitrinas que dão para a rua. Contudo, não se modernizam as recordações cegas da minha vida suspensa naquele pequeno hotel de passagem para hóspedes errantes sem pátria nem dinheiro.

E recordo, então, o quarto, pequeno, no terceiro andar, com uma pequena janela de guilhotina que dava à esquerda para uma açoteia e para mais nada, porque se abria para um muro sobre o qual espreitava um inútil pedaço de céu quase sempre cinzento: uma pequena estante de madeira onde coleccionava livros que falavam de revoluções por fazer, um armário onde guardava parcos haveres, uma colcha escura de textura áspera sobre uma cama estreita onde deitava em noites de vigília a saudade, uma lâmpada florescente no tecto, uma cortina azul escura no cubículo de banho, uma chávena onde derramava água apenas tépida colorida pelas saquetas de chá verde.

Com um golpe de google fico a saber que também o quarto foi vítima de um upgrade, e a porta entaipada pelo armário substituída por uma parede de alvenaria que já não deixa escutar os murmúrios do quarto vizinho. E concluo, então, que aquele Excelsior que ali está já não é o mesmo onde transitoriamente me encerrei nas minhas paredes interiores, mas que nem por isso deixarei de continuar a olhar, dissimuladamente, através da sua porta, sempre que suba a Rue de Cujas.

2 de junho de 2010

Hotéis de passagem (III)



Hotéis de passagem, às vezes, de ocupação sedentária, outras vezes. Como o hotel La Louisiane, na rue de Seine, em Paris, cujo quarto 58 foi, durante mais de sessenta anos, o único lugar de escrita de Albert Cossery. Ou como outros hotéis parisienses já desaparecidos, vítimas de upgrades, de reconversões ou de demolições, como os hotéis habitados por Joseph Roth, cuja obra ando a ler: o Foyot, na rue Tournon, junto ao Jardin du Luxembourg, onde já tinha morado Rainer Maria Rilke, e que Roth abandonou quando os escombros da demolição já se amontoavam por detrás da porta entaipada do seu quarto; e o tétrico hotel Florida, no Boulevard Malesherbes; e o miserável Hotel de la Poste; e o albergue Principautés Unies onde morou Hannah Arendt.

Ainda o desconcertante cenário de Hotel Savoy, em Lodz, título do romance homónimo de Joseph Roth; e em Zurique, o hotel onde às vezes Robert Walser se ocultava num quarto a que chamava a Câmara de Escrita para Desocupados e aí, sob a luz crepuscular de um candeeiro de petróleo, deixava que a sua mão indecisa o conduzisse pelos territórios do lápis, cujo traço o empurrava lentamente para o desaparecimento, para o eclipse, mimetizando-se para não ser descoberto; e também aquele quarto, não de um hotel mas de um edifício de dois andares, em Kierling, Viena – outrora um sanatório -derradeira passagem de Kafka.

Mas talvez o mais absoluto hotel de passagem de que ouvi falar seja aquele, em Port Bou, onde se abrigou Walter Benjamin em fuga para Lisboa, aonde não chegaria nunca porque as suas asas incertas de borboleta nocturna falhariam no último momento, incapazes de o levarem para fora do pequeno quarto onde se hospedara na última etapa da sua vida crepuscular. Também aí havia uma porta entaipada por detrás da qual se adivinhava a lenta irrupção da manhã, que já não chegaria a tempo de iluminar a sua solidão irredutível de ter sido sempre estrangeiro em todos os hotéis de passagem da sua vida e de não ter tido nunca nada, a não ser a pasta preta pousada em cima da mesa de cabeceira, onde guardava os últimos «labirintos de tinta embebidos nos seus cadernos».

21 de maio de 2010

Hotéis de passagem (II)


Nas minhas andanças através de uma cartografia pessoal onde se bifurcam livros, filmes e discos, tenho cruzado os umbrais de outros hotéis de passagem onde numa qualquer dobra da página, de faixa ou de fibra digital ousei subir a um qualquer quarto 205 e aí pernoitar, escutando, depois, noite adentro, o murmúrio de personagens momentaneamente desaparecidas do mundo lá fora, talvez, à procura, também elas, de uma qualquer porta de passagem entaipada atrás de um velho armário com espelho que dê para outras vidas enquanto eu, ocupante ocasional de um lar fugaz, ali vou, como escreveu Brecht, concebendo a vida como um romance.

Lembro-me de alguns dos 342 motéis de estrada onde Nabokov (e depois Kubrick) fez pernoitar Lolita e o seu velho amante Humbert, tudo cenários transitórios de cerimónias secretas e rituais privados oferecidos ao voyeurismo do leitor. E no armário onde guardo os velhos LPs e os recentes CDs e DVDs lá está ainda o Hotel California, dos Eagles, onde o viajante se deita sob «mirrors in the ceiling, pink champagne on ice»; e o quarto de banho do Bates Motel, onde Hitchcock engendra o assassinato brutal de uma jovem secretária, em Psico; e o Desert Song Hotel,onde Nicholas Cage se encerra para se embebedar até à morte, em Adeus Las Vegas; e os mais recentes Quatro Quartos, de Quentin Tarantino ou o quarto com vista sobre Tóquio, de Lost in Translation, de Sofia Coppola.

E em dobras de páginas, que de repente me vêm à memória, aquele hotel de Michigan que surge no conto de Borges, As metamorfoses de Shakespeare, onde um homem sem rosto oferece ao escritor argentino a memória de Shakespeare. E o Costa Verde Motel Tulán, de A noite da iguana, de Tennessee Williams, cenário de amores depressivos; e o obscuro quarto de Los adioses, de Juan Carlos Onetti, onde tuberculosos se encontram para desdenhar da morte; e a «pensão de má morte», em Budapeste, onde se hospedou o protagonista de O Mal de Montano, de Enrique Vila-Matas; e o pesadelo quotidiano de O corredor do grande hotel, de Dino Buzzati; e os desassossegantes pararelismos entre diferentes hotéis, em Hotel Almagro, de Ricardo Piglia; e os hotéis baratos de Ciudad Juárez, cenários dos crimes horrendos de 2666, de Roberto Bolaño.

E como a realidade supera quase sempre a ficção, como não evocar aqui o perturbador quotidiano que Raymond Roussel encontra num hotel em Nova Iorque quando, ao pretender tomar um banho, constata "que há três mil quartos de banho no hotel e que três mil hóspedes podem estar a tomar banho ao mesmo tempo", o que o leva a desistir da ideia. Ou o hotel El Molino, em Buenos Aires, evocado pela escritora colombiana Laura Restrepo, que recorda as noites clandestinas de sexta-feira ou sábado que ali passou, depois de esperar numa longa fila de casais muito jovens, de estudantes sem dinheiro, abraçados ou de mão dada, conversando em voz baixa como se estivessem numa fila para o cinema à espera de um quarto para desaparecer do mundo lá fora, por horas, suspendendo o tempo num território fugaz no meio da obscuridade da ditadura. Conta Laura Restrepo que quis saber desse hotel transitório, se ainda lá estava na rua Salguero, e por isso, pediu a uma amiga que lá fosse. E resultou que sim, que ainda lá estva, embora também tenha sido vítima de um daqueles upgrades desconcertantes que procuram modernizar-nos as recordações.

18 de maio de 2010

Hotéis de passagem (I)


Todos hotéis são por natureza lugares transitórios. Alguns são hotéis de passe para amantes ocasionais. Outros são hotéis de passagem para transeuntes nocturnos roçando abismos por cruzar. E outros há, ainda, que são protagonistas de histórias em que a realidade supera a ficção, como um tal hotel Cervantes, situado numa rua do centro de Montevideu que aparece em dois contos de Julio Cortázar e Adolfo Bioy Casares, e que serve de pretexto para uma crónica que Enrique Vila-Matas me enviou faz algum tempo para publicação numa Atlântica por vir.

E porque - ignoro por que motivo - me cruzo, às vezes, com a sombra do escritor catalão, lembro-me de há alguns anos me ter escapado desde Colónia do Sacramento (onde, como viajante acidental, acompanhava a minha mulher num seminário de história ibero-americana) até Montevideu, e de ter errado pelo centro à procura de um velho cinema que por ali havia numa rua arruinada nas imediações da despovoada Plaza Independencia – a Soriano, entre Convención e Andes – e de ter ladeado a fachada espectral, sombria, discreta, banal de um hotel perdido no meio de edifícios feios e de despojos depositados na calçada pela vizinhança, que ostentava um grande letreiro onde se podia ler o nome de Hotel Cervantes. Ignorava ainda o desejo de Vila-Matas de, transitoriamente, aí se hospedar um dia quando for a Montevideu e, sobretudo, o mistério da porta entaipada do quarto 205, protagonista do conto La puerta condenada, de Cortázar, e de um outro escrito por Adolfo Bioy Casares, Un viaje ou El mago inmortal, cujo rumor me chegou em forma de crónica vilamatiana. Ou não fosse, afinal, para isso que servem as portas entaipadas dos quartos de hotéis transitórios.

Se minimamente suspeitasse dos mistérios que se escondiam naquele segundo andar onde viveu durante anos, até à sua morte, o poeta filósofo Emilio Oribe, e onde, também, Jorge Luís Borges confessa ter-se hospedado e sofrido de insónias - «Lembro que fui para Montevidéu. Estava alojado no Hotel Cervantes e às vezes acordava as duas ou três da manhã...» [Alifano, Roberto, Borges, Biografia verbal. Barcelona: Plaza & Janés, 1988] -, teria certamente cruzado o balcão da recepção e, quem sabe, subido ao quarto 205 e, noite adentro, escutado as vozes dos passageiros da noite que pernoitavam no quarto ao lado. Mas não. Distraído dos abismos que uma qualquer rua banal pode oferecer ao transeunte ocasional, passei pelo umbral do hotel sem entrar.

Procuro no google e confirmo que o hotel Cervantes ainda lá está na rua Soriano, em Montevideu (encontra-se actualmente em remodelação com vista a tornar-se num hotel de charme ) e que, por isso, se se concretizar o desejo de Vila-Matas - «se algum dia for a Montevideu, irei visitá-lo e tratarei de alojar-me no segundo piso, numa "pieza chiquita", onde talvez se encontre, ainda, esse grande armário que tapa a misteriosa puerta entaipada» [in Diário volúvel, Teorema]-, é de admitir que possamos ler um conto vilamatiano onde que se escutarão, seguramente, os gemidos de amantes ocasionais vindos do outro lado da porta entaipada atrás do armário, ou não fosse Vila-Matas um coleccionador nato das existências alheias, sobretudo quando essas existências roçam um qualquer abismo que se abre numa noite de insónias no outro lado de um umbral obscuro, ao mesmo tempo que no piso de baixo ressoa uma milonga de Gardel, também ele, tantas vezes, um passageiro da noite montevidiana.

4 de maio de 2010

Vulcanografias


Por estes dias em que o vulcão islandês Sneffels volta a expelir cinzas tóxicas sobre os céus da Europa, depois da Islândia já ter, antes, disseminado matéria financeira tóxica sobre os mercados, mostrando-se, assim - seja pela via da vulcanologia seja pela via da economia -, que continua válido o enigmático aforismo de Marx segundo o qual tudo o que é sólido se dissolve no ar, ou que, ironicamente, contrariando Heidegger, a técnica sucumbiu diante das vertiginosas forças tectónicas, provocando o caos nas ligações aéreas à escala planetária, como não revisitar alguns livros abissais da minha biblioteca?

Livros aparentemente adormecidos, mas que escondem vulcões tão reais como o Sneffels, e outros inventados, mais estes do que aqueles, para onde me deixei arrastar por certa vertigem da leitura, própria, aliás, de quem lê procurando encontrar à beira do abismo passagens, fendas que dão para mundos paralelos de «uma trama mais subtil, uma teia de névoa, fantasia, sonhos e conjuntivos», como escreveu esse expedicionário de vulcões inventados, Enrique Vila-Matas, em Exploradores do abismo. E onde, então, melhor, encontrar essas estreitas passagens se não à beira desses precipícios, reais e inventados, que nos atraem para uma queda sem fim?

Voltar a descer, então, pelo Sneffels, essa «boca do mundo» aberta na península Snaefellsnes, na Islandia, que me foi revelada, em noites de infância extrema, por Júlio Verne em Viagem ao centro da terra, e por onde, perigosamente, se escapuliram embriagados pela voluptuosidade das alturas , o professor e geólogo Otto Lindenbrock, o seu sobrinho Axel e Hans, o atlético guia islandês, e eu com eles, num périplo de cinco mil quilómetros de inarráveis perigos e irremediáveis fascínios, através das ocas entranhas e do mar interior do centro da terra, para regressarmos, depois, ao outro lado do mundo, numa nuvem de cinzas e gazes tóxicos, expelidos pela cratera incandescente do Stromboli.

Ali, de pé frente ao inafrontável - experimentando o mesmo sentimento de vertigem que levou Axel a pensar que não havia «nada mais inebriante que a atracção do abismo» -, eu não sabia, ainda, que a força gravitacional que me arrastava num delírio onírico de leitura precoce se metamorfosearia na vertigem que Edgar Allan Poe descreveu no conto «Uma descida ao Maelstrom», cuja imagem de pendor nihilista tão bem ilustra o vórtice da história enlouquecida atraída irresistivelmente pelo abismo, como reflexiona Bragança de Miranda em Queda sem fim (Vega, 2006).

E ainda menos suspeitava eu que, anos depois, haveria de ver Malcolm Lowry, o «cônsul da embriaguez e dos vulcões», como o descreveu o poeta José Agostinho Baptista, ser engolido em Cuernavaca, México, pelos abismos do mezcal brotando Debaixo do vulcão mais inventado da minha biblioteca, ainda que, de entre eles, o Popocatepetl seja o único que eu, sentado de frente para ele na esplanada Las Mañanitas, bebendo uma coronita muito fresca, avistei, resplandecente de neve, num Dia de los Muertos, enquanto procurava decifrar os admiráveis abismos de festa e alucinação para onde se atirou, numa queda sem fim, aquele inglês sonhador quando se viu à beira do precipício.

E nesta périplo de vulcões, reais e inventados - e este agora roubado de uma página do Diário Volúvel de Enrique Vila-Matas, -, vejo agora emergir da minha biblioteca o Tängri, espécie de montanha mágica criada por Julien Gracq nesse romance absoluto que é A costa de Sirtes [Vega, 1998], e onde Vila-Matas se deixa ir caindo nas profundezas do Tangri para nos oferecer uma lição de vulcões: «no fundo, os vulcões, reais ou inventados, não são mais do que a busca da origem, da génese da vida e da arte. (...) Um vulcão é a origem e é também geometria da erupção, mistura de atracção e repulsa».

Que fazer, então, por estes dias de revolta dos vulcões islandeses cujas poeiras acinzentam os céus da Europa e ameaçam as rotas aéreas? E que fazer diante dos outros abismos reais que escapando à vulcanografia inventada ameaçam arrastar-nos no seu vórtice numa queda sem fim? Talvez fazer como aqueles exploradores vilamatianos que «ao verem-se à beira do precipício fatal, adoptam a posição do expedicionário e sondam o horizonte plausivel, indagando sobre o que pode haver fora daqui, ou mais além dos nossos limites».

Não ter, portanto, medo de cair, porque talvez tudo dependa do modo como se cai. Porque se pode cair numa queda sem fim ou cair para a seguir nos elevarmos melhor. Tudo, então, uma arte da queda, das inclinações, do clinamen.

22 de abril de 2010

Elogio da preguiça


Saint-Germain-des-Près foi para mim, durante os dois anos que vivi em Paris, o meu bairro artúrico (como a rua imaginada e percorrida por Rimbaud que, no final do seu trajecto, dava para o fim do mundo: "só pode ser o fim do mundo se avançarmos"), onde se concentrava toda uma mitografia que levei comigo, sedimentada nos lugares imaginados da minha atracção parisiense. Neste bairro, que naquele tempo me foi oferecido como um pequeno território secreto, tracei com passos repetidos uma cartografia pessoal feita de ruas estreitas, passagens cobertas, pequenas livrarias, galerias de arte, estúdios de cinema, cafés, um mercado de rua, pequenos jardins…

Era ainda o tempo em que, por exemplo, ao virar de uma esquina, podíamos encontrar os filhos do mundo que sonharam viver em Paris. Nesse tempo, era possível, invariavelmente depois 14h 30, hora a que fechavam as agências de emprego, cruzarmo-nos com Albert Cossery, o escritor egípcio que nos anos quarenta aqui desembarcara com pouco dinheiro e tendo como única bagagem uma selecção de contos, Os homens esquecidos de Deus, que Henry Miller acabava de publicar nos Estados Unidos e que o editor Edmond Charlot pretendia publicar em França. Não trazia outra ambição que não fosse a de escrever um livro de oito em oito anos, à média de uma frase por semana.

Na rua de Seine, que começa perpendicular à rua de Saint Sulpice e desce até ao quai Malaquais, no quarto 58 do hotel La Louisiane cujas janelas davam sobre uma mercearia - frequentado na época por Gréco, Sartre, Beauvoir, Mouloudji… -, escolheu Cossery o seu único lugar de escrita, o espelho perfeito de alguém que apenas pretendeu gozar a vida, o reflexo de uma obra que elegeu o dandismo indolente como processo de reflexão permanente, povoada por mendigos filósofos, ladrões magníficos e preguiçosos impenitentes. Como Gohar, Gala ou Ossama, as suas personagens rebeldes que cultivam a pobreza para não ter nada a perder, Cossery baniu da sua existência os bens mundanos e elegeu a preguiça como arte de vida e instrumento de resistência contra a vanidade dos seus contemporâneos: «Se eu tivesse guardado tudo o que me ofereceram, seria milionário. Quando Giacometti me dava um quadro, ele sabia que eu o venderia no dia seguinte. Isso permitia-me viver durante algum tempo».

Porque um quarto de hotel não é uma casa, só ali, sem casa nem carro a atestar a sua presença sobre a terra – apenas alguns livros de Dostoievski, Nietzsche, Stendhal, Baudelaire, Rimbaud, Thomas Mann… - Cossery se sentia livre, praticando a indolência e a meditação que os seus livros celebram. «Não se trata, pois, de preguiça. É tempo de reflexão. E quanto mais preguiçoso fores, mais tempo tens para reflectir. E é por isso que, no Oriente, isso se designa por filosofia oriental… A maior parte das pessoas tem tempo. Quanto mais se desce para sul, mais encontramos profetas, magos, pessoas que reflectiram sobre o mundo». E foi aí, nesse pequeno quarto de hotel na rua de Seine, que Cossery, iluminado pela gaia ciência de Nietzsche, escreveu com toda a ternura do mundo sobre as misérias insondáveis das vielas do Cairo, nos anos quarenta, cinquenta. Embora nunca mais tenha regressado ao Egipto – «O Egipto nunca me deixou» -reinventou-o mais verdadeiro que o verdadeiro, com os seus mendigos e altivos, desesperadamente pobres, preguiçosos e indolentes.

Terá sido em Paris que, talvez, me tenha cruzado um dia com este elegante profeta da contemplação, transportado dos cafés árabes do Cairo, onde a vida corria livremente, temperada com um pouco de haxixe. Claro que nos meus dias de Paris, Saint Germain já não era o que fora nos anos brasa de Cossery, embora a brasserie Lipp e todos os outros locais frequentados por Cossery ainda lá estivessem. Mas estava menos Cossery e, sobretudo, já não estavam os seus amigos, Camus, Genet, Louis Guillouxx, Mastroianni, Ferreri. Imaginei-o aí instalado com a sua corte, em frente dos azulejos do pai de Paul Fargue. Ou, no outro lado do boulevard, no Café de Flore. Ou sentado numa cadeira no Jardim do Luxembourg, observando a única coisa de que a sua língua viperina não poderia dizer mal, as árvores: «Eu não gosto do campo. Não posso dizer mal das árvores». Mas foi no Café de Flore, onde o procurei algumas vezes e por ironia nunca o encontrei que melhor o imaginei.

Nos anos oitenta, o Flore já tinha sido colonizado por uma fauna de turistas literatos nostálgicos que perscrutavam ansiosamente a mesa onde Sartre escreveu A náusea ou o canto onde Roland Barthes se refugiava a ler o Le Monde. Poucos procuravam a sombra de Cossery cuja existência ignoravam, e muito menos o seu estatuto de escritor deslocado, marcado pela heráldica do desapego e da indolência, e tão fora da gesticulação literária e mundana. Mas a mim, fascinava-me imaginar, no meio da clientela extravagante alheia ao literário, a figura aristocrática de Cossery contemplando a rua através da esplanada envidraçada do café, talvez meditando sobre o seu último livro que publicaria em 1999, As cores da infâmia, em que continuaria a denunciar implacavelmente «a face ignóbil e grotesca dos poderosos da terra», o que levou Henry Miller a afirmar que a sua obra era «uma surpresa total. É o género de livros que precedem as revoluções e engendra a revolução, se é que as palavras possuem algum poder».

Para mim que, recentemente, li quase de seguida alguns dos livros de Cossery [Mendigos e altivos, Mandriões do vale fértil, A violência e o escárnio, Uma conjura de saltimbancos, Os homens esquecidos de Deus, Uma ambição no deserto, As cores da infâmia, todos editados pela Antígona], as suas palavras sobre a gesta dos anti-heróis das ruas do Cairo, continuam a sinalizar as paragens do meu itinerário de leitura. Isto porque, tal como Ahmed Safra, o condutor de eléctricos de A casa da morte certa, que só se detinha nas paragens que lhe apetecia, também eu só me detenho em livros embebidos na tinta da vida e, por isso, capazes de agitar o pensamento.

18 de abril de 2010

Sob o céu de Tânger


«Não escolhi instalar-me em Tânger. Aconteceu. Devia ser uma estadia breve. Queria continuar, indefinidamente. A preguiça fez-me adiar a partida. Um dia, tive de render-me: o mundo estava muito povoado, os hotéis eram menos bons, as viagens menos agradáveis e as paisagens menos belas. Quando estava noutro sítio, lamentava não estar em Tânger. Estou aqui porque cá estava quando percebi a que ponto o mundo piorou. Já não queria viajar mais», confessa Paul Bowles.

Tânger aqui tão perto. Sai-se de manhã cedo de Portimão e, pelo meio-dia, tomamos o ferry em Tarifa. Primeiro, o porto, depois a Place Koweit; almoçamos no Hotel Continental, alojamo-nos, saímos de novo, tomamos um taxi que nos leva encosta acima entre terrenos baldios até ao Edifício Itesa, onde Bowles viveu desde os cinquenta anos até poucas semanas antes da sua morte, em 1999, aos oitenta e oito anos. Subimos umas escadarias amplas de mármore até ao quarto andar e batemos à porta do apartamento 20. Esperamos. Ninguém responde. Não veremos a sua última morada. A mesma que foi visitada por Mick Jagger e Brian Jones, seus vizinhos por algum tempo no andar de baixo do Itesa, e que vieram a Marrocos para ouvir os sons dos fazedores de perfumes e gravar os Master Musicians of Jajouka que seria considerado o primeiro álbum de músicas do mundo. Primeiro que ninguém, Bowles tinha descoberto esta música nas suas deambulações por Marrocos, enquanto musicólogo. Porque Bowles já não mora ali descemos, e já na rua avistamos um pedaço azul do estreito de Gibraltar. «Há lugares no mundo que contêm mais magia do que outros», escreveu Bowles.

Voltamos a descer a ladeira de Monteviejo, por entre os ciprestres que ladeiam a estrada que nos devolve à Medina. Perdemo-nos no labirinto de ruelas, sob odores exóticos e reencontramo-nos à porta do The Paul Bowles Room, na antiga American Legation. Entramos. O ambiente irradia serenidade, apesar de três das velhas malas que correram o deserto, outras vezes o mundo, nos convidarem ao devaneio. Imaginamo-lo, então, sentado em tantos lugares, aqui, em Fez, em Ait-Benadou, no deserto ao crepúsculo, sob um céu que nos protege, as montanhas azuis ao fundo. Se aqui estivesse agora falaria da disciplina errática das viagens. De nomadismos. Do mar de Conrad. Do silêncio do deserto. De Graham Greene e Raymond Chandler. Da hibris marroquina. Sim, de Jane Bowles. De Kafka, Gerturde Stein e Flannery O´Connor. A prisão do corpo. A morte libertadora. Os labirintos do kif. A poesia de Mohamed Choukri. A escrita como ritual. O concerto de oboé e clarinete que nunca terminou.

Saímos para o primeiro entardecer de Tânger. Há homens trabalhando cestos, o cobre, a lã. A padaria onde Bowles comprava o pão, naquela esquina antes dos degraus do Baba. Procuramo-lo no Café Hafa, por entre delicados saracoteares de copos de chá de menta. Depois, no Café de Paris, outrora também frequentado por Jean Genet, um dos muitos que ajudaram a criar o mito de Tânger, cidade nervosa. Impossível não imaginar neste refúgio déco o encontro entre Malkovich e Debra Winger, à procura de si próprios em Um Chá no Deserto. A voz de Bowles, no filme, confessando que, mais tarde, acabariam por se perder, irremediavelmente, nas areias sedutoras e fatais do deserto. Mas é na ressuscitada Librairie des Colonnes, onde Bowles se encontrou tantas vezes com Mohamed Choukri, e que utilizava como caixa pessoal de correio, que reencontramos o antigo espírito do lugar. Abrimos um livro que fala desta cidade, Deixa chuva cair. E é nessa morada de vocação mediterrânica que, finalmente, o encontramos numa Tânger desaparecida onde vingava a corrupção e a desordem, onde se movimentavam vigaristas e assassinos, excêntricos e ninfomaníacos, homossexuais e magnates. Dolorosa iniciação.

Eras um americano a fugir do mal-de-vivre urbano. Tinhas chegado com Aaron Copland, procurando romper com o nomadismo cosmopolita que te levara a viajar pela Europa primeiro, depois pelo Extremo-Oriente e pela América Central, com incursões mais ou menos prolongadas em Paris e Nova Iorque. Em 1947, decidiste ficar aqui, em Tânger, donde partias em viagens pelo deserto como relatas em Baptism of solitude. Sim, Bertolluci também percebeu esse fascínio e ofereceu-nos Um chá no deserto, baseado no teu livro O céu que nos protege. E muitos vinham aqui visitar-te. Truman Capote, Tenesse Williams, Cecil Beaton, Jack Kerouac, Allen Ginsberg, William Burroughs, Gore Vidal foram alguns dos que participaram no desregramento de sentidos das longas noites estreladas de Tânger.

Mas quem sempre ficou aqui foste tu. E disso nos falas agora: «É estranho. Vivo aqui há 59 anos e continuo a ser um turista. As pessoas vêem-me como turista e acho que têm razão. Isto apesar de, oficialmente, eu ser residente. Mas a menos que nos tornemos muçulmanos, continuamos a ser estrangeiros. Eles vêem-me como um Nassrani, ainda que não seja cristão. É muito difícil tornarmo-nos amigos íntimos de alguém. Aqui, é-se apreciado como fazendo parte de um grupo. O estrangeiro, digamos, o turista, não sabe como aproximar-se dos marroquinos, pois a sua forma de pensar é diferente. Para eles, as coisas importantes não são as mesmas. Há que aceitar, e continuar a aceitar, suceda o que suceder, uma vez que quem estuda as pessoas está na posição de espectador, observando as pessoas de outra cultura».

Por isso, aqui, neste café, ao crepúsculo tangerino, rencontrar Paul Bowles talvez seja também uma forma de nos deixarmos cobrir, nós e este islão vizinho, sob o mesmo céu que nos protege.

13 de abril de 2010

Nomadismos



«Fui fotografando calmamente, sem ansiedades, porque mais importante do que as imagens eram as palavras, as conversas. Tinha a nítida sensação de estar perante um sábio, um homem que tinha vivido, traçado o seu destino, encontrado a sua alma. A casa e a pessoa de Bowles irradiavam serenidade, apesar da sua biografia e do monte de malas na entrada lembrarem outras existências», escreveu Daniel Blaufuks em My Tangier, o ensaio fotográfico que publicou em 1991 resultante de uma expedição à mítica Tânger, ao encontro do escritor norte-americano Paul Bowles que ali escolheu viver, até à sua morte em 1999.

Ontem, ao arrumar os livros na prateleira mediterrânica da minha biblioteca, abriu-se-me a mala que ele levou na sua primeira viagem a Paris, onde conheceu o poeta surrealista Tristan Tzara. E lá encontrei a edição da Assírio & Alvim, anotada a lápis, da sua autobiografia Memórias de um nómada, onde, por instantes, reencontrei Bowles escrevendo sofregamente, deixando cair no papel «without stopping» uma torrente de palavras: muitos contos, novelas, traduções de amigos marroquinos, livros de viagens. Na mesma mala, cujos segredos me foram momentaneamente revelados, lá estava, também, Deixai a chuva cair, o romance sobre a nervosa Tânger, cidade por onde Bowles errou durante grande parte da sua vida. Bowles que se fez desaparecido em Marrocos, corresponde ao mito simpático do ocidental que rejeita o estatuto social da sua origem para se ocultar na distância libertadora do Norte de África.

Impossível, por isso, não recordar Manuel Teixeira Gomes, político, diplomata e ex-presidente da República e, sobretudo, escritor de contos, novelas, cartas, livros de viagens… e viajante vagaroso, por países e mares, da Europa à África do Norte e à Ásia Menor, através de cidades e portos onde mercadejou, amou mulheres múltiplas, visitou museus, leu e escreveu, como um dandy elegante. Também Teixeira Gomes, nas suas andanças mediterrânicas, aportou um dia em Tânger, seguramente com a sua «mala grande». E, também ele, se fez desaparecido, depois, em Bejaia, Argélia, onde viveu esquecido no quarto número 13 do Hotel Étoile - a sua «mala grande» transformada ali num sedentário guarda-roupa, mas a lembrar a sua anterior existência nómada. Uma vida sem fronteiras nem códigos a limitar o desejo e a imaginação criadora. Como uma gaivota atraída pelo brilho das paisagens do sul, sem nada querer possuir a não ser um pequeno quarto num hotel, depois de ter tido todo o mundo no olhar.

19 de março de 2010

Istambul desaparecida


Fui a Istambul pelos passos de Orhan Pamuk, perseguindo uma cidade secreta, descrita «em dois tons, como a cor do chumbo, semiobscura, no estilo das fotografias a preto e branco» do fotógrafo Ara Güler. Fui para descobrir uma cidade desaparecida ou, pelo menos, invisível ao olhar do turista fortuito, mas que, ainda, é capaz de se revelar ao viajante que ousa «perder-se [nela] tal como é possível acontecer num bosque», o que «requer instrução», como um dia disse Walter Benjamin. Fui, por isso, desde o meu hotel, na praça Taksim, mapeando as ruas secundárias de Beyoglu, de Gálata, de Cihangir, de Fatih e de Zeyrek à procura do aleph que todas as cidades escondem e que, ali, é a paisagem a preto e branco cuja «beleza reside na sua tristeza», como escreveu Ahmet Razim, também ele um cronista desta cidade nervosa que tem um pé na Europa e outro no Oriente próximo.

Fui por ali como um expedicionário de memórias alheias - as memórias de Orhan Pamuk que me chegaram através das páginas lentas, quase proustianas, do seu livro Istambul: Memórias de uma cidade (Editorial Presença) e que constituíram a minha prévia e necessária «instrução» para me perder na cidade inquieta, simultaneamente real e onírica, mas também as memórias de ilustres viajantes estrangeiros do século XIX; como Meeling que nos legou em Voyage pitoresque de Constantinople et des rives du Bosphare esplendorosas gravuras das paisagens do Bósforo; ou Nerval que em Voyage en Orient compara a exuberância da Rua Grande de Pera, hoje a Avenida Istikal, a Paris; ou Gautier que em Constantinople narra o seu périplo melancólico pelos subúrbios assombrados de Üsküdar, Karaköy e Byazit; ou Flaubert que nas cartas que envia desde Istambul fala do frio da cidade e do vento poyraz que sopra do Mar Negro encapelando as angras.

Fui por ali, também, recordando o que o escritor, político e viajante Manuel Teixeira Gomes escreveu, em Miscelânea, sobre Istambul, onde aportou num dos seus périplos mediterrânicos. «Já na minha última visita a Constantinopla, onde eu andava algo febril e depauperado por uma dose de malária, apanhada nas ruínas de Éfeso, uma ou outra dessas figurinhas [do sarcófago de Alexandre] me aparecera de fugida, e sempre nos cemitérios que são o que ali há de mais helénico. Os cemitérios de Constantinopla! Lembra-se? O bosque de ciprestes em Scutari, mostrando ao fundo das suas infinitas ruas a perspectiva risonha do Mar de Marmara; e a poesia dos pequeninos cemitérios de Gálata, fechados em tuias e alcatifados de tulipas! E os encontros nessa inverosímil cidade, que são como em nenhuma outra parte inesperados, sugestivos, fugazes e estranhos. É uma incessante parada que levanta do pó dos séculos as mais pitorescas e formosas criações. Dias há que nos parece que as estátuas antigas desceram dos seus pedestais, e as odaliscas se evadiram dos gineceus e vieram espairecer pelas «Águas-doces-da-Europa, ou pelos bazares de Istambul. Ou misturar-se ao formigueiro humano que enche continuadamente a amplíssima ponte que fecha o Corno de Oiro».

Fui por ali, não tanto para atravessar a floresta de banalidades urbanas circundantes, mas para até mesmo na topografia turística descortinar desde o Bósforo, tal como Manuel Teixeira Gomes a viu, uma Istambul «armada no coração do mundo, com as mil lanças dos seus minaretes», com torres, palácios, mesquitas, colunas e cúpulas. O esplendor desvanecido da Hagia Sofia; a incandescente visão da Mesquita Azul com os seus seis minaretes rasgando os céus; o harém do Palácio de Topkapi; a estação Sirkeci onde durante anos terminava a linha do Expresso do Oriente, com gente anónima com malas chegando e partindo; mais gente anónima apressada atravessando a ponte Gálata por entre uma chusma de pescadores à linha que ali gastam o tempo e a vida; o Grande Bazar em cujo labirinto de vozes e coisas se pode achar desde os brocados gregos ao açafrão iraniano, do vidro de Alepo aos tecidos listrados do Iémen; e o Bazar das Especiarias com os seus mil aromas e texturas visuais.

E fui por ali, sobretudo, à procura de uma Istambul secreta sedimentada em camadas de esquecimento que, como escreve Pamuk, se escondem sob «o arco mais modesto, a fonte mais pequena enterrada em toneladas de betão, a mesquita mais pobre nos bairros afastados, por maltratados e esquecidos que estejam, fazem sentir com dor aos milhões de pessoas que vivem entre essas memórias - tanto como as grandes mesquitas monumentais e os edifícios históricos da cidade - que são resíduos de um grande império». Vestígios esquecidos de uma Istambul de prodígios e raridades acesas que se negam em desaparecer e que irrompem nas entranhas de ruas secundárias; na penumbra dos seus tugúrios míticos de casas de madeira vazias e cambadas. Nos seus cafés e tabernas com mesas de mármore onde se sentaram os escritores solitários do hüzun - a melancolia turca - agora a abarrotar de desempregados e delicados saracoteares de chávenas de chá, e onde também eu me sentei a beber raki. Nas livrarias vazias de alfarrabistas encaixadas em passagens secretas onde procurei um livro inexistente do turcófilo Pierre Loti; nas velhas barbearias, outrora lugares de discussão política e, onde, hoje, os poucos clientes discutem as rivalidades futebolísticas locais. No cântico do muezzin que se evola nos ares sobre a penumbra dos entardeceres e se confunde com o pregão monocórdico dos vendedores de simit. Nos olhos cor de uva das mulheres de lenços islâmicos na cabeça, intangíveis, suspensas no tempo nas paragens de autocarros; nos vapur a abarrotar de gente no ir e vir sem fim entre a Europa e a Ásia. Nas docas de Sirkeci e Eminönü fervilhando de gente apressada no ir e vir sem fim entre a Europa e a Ásia. No cais de Karakoy, onde desembarcam os desempregados russos e romenos e as "Natachas" que logo se prostituirão ali perto, nas ruelas dos antigos bordéis.

Fui por ali, cruzando o Bósforo num vapur, o proyaz, o vento que sopra do Mar Negro, açoitando-me o olhar, e vi, como Orhan Pamuk, a silhueta fugidia de Istambul desfilando à minha frente «com todo o peso do seu caos, com as suas mesquitas, os seus bairros afastados, as suas pontes, os seus minaretes, as suas torres, os seus jardins». O vapur correndo no meio de rápidas correntes, no meio da sujidade, do fumo e do ruído. «Ventos, ondas, profundezas, trevas». As margens esmagadas por altos edifícios que ocupam agora um território onde antes havia grandes konak e yali de madeira rodeados de jardins com ciprestes e habitados paxás loucos, e que foram incendiados para instalar o novo turismo; os estaleiros abandonados apodrecendo insidiosamente nas margens maltratadas; as chusmas de pescadores à linha nos cais pacíficos de Besiktas; os gatos que espreitam os pescadores por entre os plátanos da marginal; os dolmus apinhados de passageiros, na sua marcha lenta, à beirinha da margem; os restaurantes com ramadas sobre ancoradouros onde acostam barcaças trazendo anchovas e sargos que saltam directamente para as frigideiras.

Fui por ali e na esplanada do Café Pierre Loti, na "colina dos mortos", na penumbra do eclipse, por entre o preto e o branco, pareceu-me ver, por instantes, a mesma beleza triste e aquática de uma Lisboa desaparecida.

(alto: foto de Ara Guler)

1 de janeiro de 2010

As qualidades da década


Na curva derradeira do ano e, também, da década, num impulso momentâneo, arrebatado, talvez, por uma certa forma de nihilismo que faz da actualidade o modo crucial da temporalidade contemporânea levando tantos de nós, em jornais, revistas e televisões a fazer os balanços, as recensões, as listas do que, nas diversas áreas, precisa de ser inventariado nesta sucessão cada vez mais veloz de fins e recomeços cíclicos, para logo em seguida ser depositado nos arquivos da nossa memória breve, vou como um «explorador de abismos» medindo os acontecimentos desta década que está prestes a findar para melhor avaliar as suas qualidades.

E, à medida que vou escandindo a década, é como se estivesse «de pé e enfrentando o caos», como um explorador vilamatiano que ao ver-se à beira do precipício fatal adopta a posição do expedicionário e sonda o horizonte plausível, indagando sobre o que pode haver fora daqui, ou mais além dos nossos limites» (Enrique Vila-Matas).

«Frente ao inafrontável», como diria Zygmunt Bauman, momentaneamente entregue a esta forma de nihilismo que me leva a recensear o passado, vejo e revejo uma década que foi inútil, para não dizer completamente fracassada, mesmo naquilo em que parecia haver um consenso para se avançar, como o combate às alterações climáticas e uma melhor gestão dos recursos esgotáveis do planeta, como ainda há dias se viu com o dramático fiasco de Cimeira de Copenhaga onde os líderes do mundo se revelaram incapazes de encontrar a receita para debelar o enlouquecimento do clima. O conflito israelo-palestiniano foi nesta década agravado com o erguer de um muro de ódio e silêncio que vai serpenteando na paisagem bíblica, dividindo, espartilhando ruas e estradas, quintais, hortas, vizinhanças, incendiando ódios na «terra prometida». Outros conflitos, sem solução à vista, no Iraque, Afeganistão e, por arrastamento, no Paquistão, vão transformando as suas cidades em espirais fantasmagóricas de corpos destroçados por bombistas suicidas. A fome, a doença e a morte estendem-se como um manto negro sobre o continente africano transformado num território de sedimentos intransponíveis, rios pedregosos, árvores calcinadas, despojos de máquinas destruídas por guerras passadas. A violência associada ao narcotráfico encontra-se incontrolada em várias regiões da América Latina. A pobreza e a exclusão social atingem camadas cada vez mais vastas das populações, aumentando o fosso entre ricos e pobres. No rescaldo do 11 de Setembro, o medo assentou praça nas nossas vidas e derrota-nos diariamente nas nossas ruas vigiadas, nos aeroportos, nos aviões. O mundo ficou mais imundo, prisioneiro de um capitalismo descontrolado, dos homens de negócios sem escrúpulos e dos sacerdotes da economia libérrima tornada no novo absoluto dos tempos modernos, espalhando mais desemprego, mais pobreza e suicídio entre os mais desfavorecidos. Nunca a formulação de Walter Benjamin foi tão verdadeira como na década que agora finda: «Cuidado, tudo é perigoso, mas não igualmente ao mesmo tempo».

Incapaz de enfrentrar o caos, diante do torvelinho que vai arrastando o mundo pelo vórtice fatal tão bem descrito por Edgar Allan Poe no conto «Uma descida ao Maelstrom», às mãos dos homens de negócios e do novo determinismo histórico. A política tornou-se num teatro de títeres. E nós, neste teatro, em separado ou em simultâneo, com maior ou menor consciência das qualidades que nos são incitadas, puros hedonistas, hiperactivos, contempladores sensíveis, espectadores obscenos, fetichistas da ascensão social, somos figurantes sem voz da «operação de encobrimento a que chamamos sociedade». E, assim, nos deixamos ir em «apocalipse alegre» - para utilizar a mesma fórmula que Hermann Broch usou para descrever o nihilismo da sociedade europeia de fim de século - que é, também, a forma como hoje nos vamos entregando ao nihilismo pós-moderno, falhando, como diria Walter Benjamin, a ocasião de as coisas não continuarem como antes.

Daí, então, que este balanço das qualidades da década possa parecer, numa espécie de espelhismo simétrico relativamente aos acontecimentos medidos, também ele, nihilista. E sê-lo-á quer no sentido em que inventaria a incompletude, o falhado, a catástrofe de «as coisas continuarem como antes», quer, ainda, por corresponder a um modo de escandir o tempo que parece apenas produzir passado, o que - se não for excessiva a convocatória da formulação de Nietzsche - constitui uma nova forma de «doença histórica» que revoga o tempo breve da novidade. Mas, paradoxalmente, mesmo que nihilista face à consciência da generalização actual do alegre apocalipse, porque não ler, também, nesta recensão das qualidades da década uma forma de rebelião contra o próprio nihilismo, na medida em que denuncia a ilegitimidade dessas qualidades?

Porquê continuar a aceitar o que está aí quando podemos sempre procurar outra coisa, como faz, por exemplo, o personagem Ulrich no inacabado livro de referência deste blogue, O Homem sem Qualidades? Porquê aceitar as qualidades atrás referenciados quando nos podemos desprender delas e esperar que a próxima década ofereça outras possibilidades ao mundo, outras ocasiões de não deixar as coisas continuarem como antes?

Talvez nalguma cesura aparentemente invisível na sucessão veloz de fins e de recomeços, como «exploradores optimistas,» possamos, ainda, sondar os horizontes plausíveis do tempo que aí vem, indagando sobre as qualidades necessárias para superar as consequências dos acontecimentos passados, dando, finalmente, como bem o tentou Walter Benjamin na sua solidão irredutível, «o salto de tigre no céu livre da história».

[foto ao alto: © Lartigue]