17 de março de 2012

A actualidade fabricada


Um artigo inédito de Albert Camus sobre jornalismo livre, censurado em 1939, e publicado esta semana pelo Le Monde, recupera o olhar crítico e a isenção do autor de O estrangeiro e revela uma extraordinária pertinência face à forma como o jornalismo actual vem respondendo aos acontecimentos, renunciando ao compromisso de se afirmar como um "contra-poder" quer dos jogos políticos, quer de inconfessados interesses económicos quer, ainda, de si próprio.

Ora, a constituição da experiência contemporânea é cada vez mais determinada pelas máquinas mediáticas que nos dão a ilusão de estar em todo o lado ao mesmo tempo. Quer queiramos quer não, estamos imersos na actualidade "fabricada" pelos media contemporâneos que tendem a produzir uma espécie de delírio colectivo universal em torno de acontecimentos processados mediaticamente em função de inconfessados interesses que pouco têm a ver com a ética jornalística enunciada por Camus.

Numa época em que a França já paralisada pelo medo da invasão nazi e quando as suas elites políticas e jornalísticas se dispunham à renuncia sem pudor ao Terceiro Reich, Albert Camus propunha uma ética jornalística assente em quatro princípios: lucidez, desobediência, ironia e obstinação. A lucidez que "supõe a resistência aos mecanismos do ódio e da ira e ao culto da fatalidade". A desobediência que "face à crescente maré de estupidez, é necessário também opor". "A ironia que é uma arma sem precedentes contra os demasiados poderosos". E "um mínimo de obstinação para superar os obstáculos que mais desanimam", a saber: "a permanência da absurdo, a abulia organizada, a estupidez agressiva".

Ora, 73 anos depois, embora não haja censura, o manifesto jornalístico de Albert Camus continua actual face à promiscuidade entre as classes políticas, empresariais e mediáticas e à renuncia dos media em se afirmarem como "contra-poder" de si próprios como, também, já defendera Karl Kraus na Viena dos princípios do século XX.

A experiência contemporânea mediatizada constitui-se não em função do acontecimento em si, mas através da construção de uma ficção jornalística que visa a identificação gratuita do público com o acontecimento despolitizado e abordado em função das convulsões dos seus protagonistas. Vistas assim as coisas, o jornalismo, hoje, responde ao acontecimento não para para lhe dar tonalidade expressiva e retraçá-lo racionalmente, mas para nos introduzir nele como espectadores obscenos cujo ponto de vista é sempre incitado, e excitado, por formas mediáticas demagógicas e manipuladoras da opinião pública, que originam as várias e contraditórias patologias de posição que somos coagidos a adoptar, marcadas por uma ilusão paranóica de poder sobre os protagonistas do acontecimento.

Lemos e vemos as notícias que nos são oferecidas com a ilusão de penetrar na intimidade do outro como se, momentaneamente, nos fosse concedido o direito de tudo julgar sem que para isso tenhamos de ser confrontados com a nossa responsabilidade moral. Daí, a banalização lúdica da violência, da crueldade, a exposição da intimidade, a reivindicação divertida da futilidade diariamente servida nas televisões. Mas daí, também a urgência de - contrariando Karl Kraus que dizia que "o jornalismo come o pensamento" - pôr o jornalismo a pensar, porque quer queira quer não essa é a sua essência. Porque, como escreveu Camus, "se [um jornalista] não pode dizer tudo o que pensa, pode [pelo menos] não dizer aquilo que acredita que é falso".

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