No ensaio O desconhecido de si mesmo,
que prefacia a Antologia com que Octavio Paz dá a conhecer ao mundo de
língua espanhola um obscuro poeta português chamado Fernando Pessoa,
contribuindo decisivamente para incorporá-lo ao cânon literário
contemporâneo, o poeta e ensaísta mexicano escreveu que "os poetas não têm
biografia. A sua obra é a sua biografia. Pessoa, que sempre duvidou da
realidade deste mundo, aprovaria sem vacilar que fosse directamente aos seus poemas,
ignorando os incidentes e os acidentes da sua existência. Nada na sua vida é
surpreendente - nada, excepto os seus poemas. [...] Pessoa quer
dizer persona em português e deriva de persona, máscara do teatro
grego. Máscara, personagem de ficção, ninguém: Pessoa. A sua história poderia
reduzir-se ao vai-e-vem entre a irrealidade de sua vida quotidiana e a
realidade das suas ficções. [...] Assim, não é inútil recordar os
acontecimentos mais marcantes da sua vida, desde que não ignoremos que se trata
das pegadas de uma sombra".
Ora
há uma história na vida de Octavio Paz (México D.F., 31 de março de
1914 - Coyoacán, México, 19 de abril de 1998) cuja evocação - neste
dia em que o poeta e ensaísta mexicano faria cem anos, mais do que um
"incidente ou acidente" na sua existência - foi, conforme ele mesmo
confessou, um dos acontecimentos mais marcantes da vida. Essa história começa
numa noite de outono de 1958, em Paris, durante um jantar de amigos, numa casa
do Marais, quando a poeta surrealista e socióloga anarquista Nora Mitrani
(1921-1961), que frequentava o círculo surrealista agrupado à volta de André
Breton, como Yves Bonnefoy, Benjamin Péret, André Pieyre de Mandiargues, Julien
Gracq, com quem Nora vivia, e o próprio Octavio Paz, que havia sido adoptado
por Breton quase desde a sua chegada a Paris, em 1949, como ele mesmo contou,
refere o nome, até então desconhecido para Paz, de Fernando Pessoa,
cuja poesia Nora conhecera em Lisboa, nos anos 50, através de Alexandre O’Neill
por quem se apaixonara. Dias mais tarde, Paz haveria de ler alguns
poemas de Alberto Caeiro que Nora tinha traduzido para para a revista Le
Surréalisme, Même. E alguns meses depois, Vieira da Silva emprestar-lhe-ia
as Obras Completas de Pessoa que a editora Ática começara a publicar em
1942.
Quando, anos mais tarde, em 1962, Octávio Paz escreveu O desconhecido
de si mesmo, talvez tenha pensado que se naquela noite de outono de 1958
não tivesse conhecido Nora, talvez, também, não tivesse conhecido Pessoa. A
revelação feita por Nora do poeta plural que vivera e inventara em Lisboa uma
fabulosa genealogia literária, haveria de levar Paz a "trabalhar
encarniçadamente" sobre a obra de Pessoa, não para revelar-lhe a biografia
mas para perseguir as pegadas da sua sombra errante sobre as quais também ele
haveria de caminhar.
Em Fernando rei da nossa Baviera, no capítulo
que dedica ao que chama a fortuna crítica de Fernando Pessoa, Eduardo Lourenço
refere que "foi depois de o ter lido em francês que um poeta e ensaísta
tão eminente como Octávio Paz escreveu o seu breve e magistral ensaio O
desconhecido de si mesmo que se não é o primeiro na língua irmã da nossa
será o primeiro a alcançar uma larga audiência". Desse ensaio vale a pena
citar a seguinte passagem em que Paz: "Caeiro, Reis e Campos são
os heróis de uma novela que Pessoa nunca escreveu. ´Sou um poeta dramático´,
confia em carta a João Gaspar Simões. No entanto, a relação entre Pessoa e seus
heterónimos não é idêntica à do dramaturgo ou do romancista com as suas
personagens. Não é um inventor de personagens-poetas mas um criador de obras-de-poetas.
A diferença é capital. Como diz Casais Monteiro: ´Inventou as biografias para
as obras e não as obras para as biografia´. Essas obras – e os poemas de
Pessoa, escritos perante, a favor da e contra elas – são a sua obra poética.
Ele mesmo se converte numa das obras de sua obra. E nem sequer tem o privilégio
de ser o crítico dessa coterie: Reis e Campos tratam-no com certa
condescendência; o barão de Teive nem sempre o cumprimenta; Vicente Guedes, o
arquivista, assemelha-se tanto que, quando o encontra numa taberna do bairro,
sente um pouco de piedade por si mesmo. É o encantador enfeitiçado, tão
totalmente possuído por suas fantasmagorias que se sente olhado por elas,
talvez desprezado, talvez motivo de compaixão. As nossas criações julgam-nos".
A Octavio Paz deve Fernando Pessoa a revelação da sua poesia no universo da língua
espanhola, dando início a um movimento imparável de curiosidade e descoberta da
sua obra. Mas também a obra de Paz não poderia ser imaginada sem a consciência
que o autor mexicano teve da tradução e da escrita enquanto criações estéticas,
morais e rituais, uma consciência inspirada pela obra de Pessoa de quem Paz
traduziu meia centena de poemas que foram a levedura modernista que haveria de
dar corpo à sua poesia.
[escrito e publicado em 31 de março para assinalar o centenário do nascimento de Octávio Paz, apagado por lapso, recuperado, e republicado em 1 de abril]
[escrito e publicado em 31 de março para assinalar o centenário do nascimento de Octávio Paz, apagado por lapso, recuperado, e republicado em 1 de abril]